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Uma Possível Fundamentação para a Utilização da Cannabis para uso Médico e de Investigação

António Bugalho – Médico Hospitalar Consultor

Photo by Rick Proctor on Unsplash

A utilização de cannabis em medicina ou mesmo em investigação médica, tem sido objecto de centenas de artigos publicados em revistas científicas e, hoje em dia, a sua utilização já é recomendada oficialmente para algumas enfermidades, destacando-se a epilepsia infantil, as náuseas, vómitos, humor e apetite de pacientes com cancro e sujeitos a tratamentos específicos, e em pacientes sujeitos a cuidados paliativos devido a estadios terminais de diversas doenças, incluindo HIV.

Muitos países ou territórios autónomos, têm nos últimos anos liberalizado o seu uso, em consequência da pressão de grupos sociais ou associações, de alguma forma ligados à medicina ou a alguns grupos com interesse em determinadas entidades nosológicas, onde de forma ainda não conclusiva, se acredita haver benefícios, apesar de os estudos até agora publicados não permitirem os maiores níveis de evidência e recomendação.

Algumas destas entidades recomendam o uso da cannabis para as perturbações do sono, no apetite, na dor, no prazer, memória, sensação visceral, disposição, crescimento, tal como as perturbações do movimento e da função imunológica.

Tal como acontece com outras plantas, a cannabis é utilizada em medicina humana há milhares de anos e, embora a sua menção mais antiga seja datada de escritos chineses de 2700 AC, provavelmente desde que o homem começou a dominar a agricultura, há mais de dez mil anos que ela é utilizada. São conhecidas referências à planta em papiros egípcios datados de 1500 AC e na Índia, em 600 AC, era frequentemente utilizada em misturas como anestésico.

Oriunda das estepes da Ásia Central, a cannabis foi trazida para outras partes do mundo sempre associada a efeitos curativos e místicos, como aconteceu em África por intermédio dos mercadores egípcios e árabes, no Norte de África e na Europa pelas conquistas islâmicas e posteriormente na época dos descobrimentos para a América do Sul e o chamado Novo Mundo.

Os efeitos psicotrópicos de alguns componentes da cannabis (cannabinoides), principalmente o THC (tetrahidrocannabinol) e a sua utilização recreativa em larga escala pelos jovens, levaram a que durante o século XX, a começar pelos Estados Unidos, o seu uso fosse alvo de criminalização e esta posição foi sendo adoptada por vários países, inclusivé pela Organização das Nações Unidas, até à primeira década deste século.

No entanto, precisamente por causa deste efeito, foram estudados os seus componentes e a sua relação com o comportamento e virtuais efeitos no sistema nervoso central. Apesar do tetrahidrocannabinol (THC) ter sido isolado no fim do século XIX, e estudado ao longo do século XX, bem como o cannabidiol (CBD), outro componente não psicotrópico descoberto em 1940, foi só em meados da década de 1990 que os cientistas identificaram um novo sistema no organismo humano até então desconhecido: o Sistema Endocannabinoide (ECS), assim chamado devido ao estudo dos componentes da cannabis sativa. Este sistema do nosso organismo regula toda a homeostase e permite uma conversação de adaptação ao meio ambiente entre o cérebro e todos os outros tecidos que constituem os orgãos de todos os nossos sistemas. Quer dizer que as nossas células têm receptores cannabinoides que respondem a moléculas neuro-transmissoras chamadas endocannabinoides, duas das quais foram já identificadas, a anandamide e 2-arachidonoylglycerol.

O estudo deste sistema e a sua compreensão são muito recentes e levantam novas perspectivas para a terapêutica de várias patologias para as quais as alternativas são ainda limitadas. Todos os mamíferos partilham connosco este recém-descoberto sistema, e a maior parte dos animais vertebrados. Tal como sempre tivemos um sistema opióide endógeno, com receptores que respondem a moléculas de “morfinas endógenas” (endorfinas), que permitiu a compreensão para a utilização de opióides provenientes de plantas e levaram ao desenvolvimento da anestesia moderna. A perspetiva deste novo sistema endocannabinoide abre enormes possibilidades à utilização de cannabinoides externos ou fitocannabinoides provenientes das espécies conhecidas de cannabis que contêm dezenas de componentes cannabinoides, tendo sido identificados até hoje 113 componentes diferentes.

Outras plantas que não a cannabis contêm também componentes que agem no sistema endocannabinoide tal como a planta do cacau, a pimenta preta, as equináceas, e a radula. Estes componentes são cannabimiméticos, e também têm se ligado aos receptores cannabinoides, fazendo desencadear as acções como se fossem activados por um cannabinoide endógeno, ou potenciando a acção de um fitocannabinoide.

A produção de moléculas sintéticas está já em curso por parte de grandes farmacêuticas, tendo  sido aprovadas pelo menos duas formulações. Porém, entretanto, moléculas sintéticas de THC (psicotrópico), produzidas em laboratórios clandestinos, também têm inundado o mercado recreativo a partir da Ásia, com efeitos comprovadamente mais nocivos do que a própria planta, agravando o problema da saúde pública relacionado com esta utilização.

A cannabis usada em medicina é principalmente o CBD (cannabidiol). Não sendo fumada como quando é usada como recreação, ela é, ao invés, usada por vaporização, chás ou outras formas de ingestão, óleos, cápsulas, ou mesmo em formulações de aplicação externa. A transformação farmacêutica não supera a utilização da planta ou de partes dela mas tem-se mostrado de grande potencial comercial para esta indústria, a partir da utilização da planta. Muitos países, incluindo o Canadá, alguns Estados norte-americanos e alguns da América do Sul, têm vindo a liberalizar o seu uso na medicina e para investigação médica. Em África, o Reino do Lesotho e o Zimbabwe, descriminalizaram a cannabis mediante regras específicas para cultivo e utilização, sendo também uma importante fonte de rendimento para esses países. através desta importante industria agro-famacêutica.

 A nossa população, à semelhança das populações estudadas noutros países, em todos os níveis económicos e sociais, privilegia o uso natural das plantas, usando em percentagens muito semelhantes quer as fórmulas famacêuticas, quer as alternativas naturais, preferindo muitas vezes as últimas. Os médicos, os seus centros de formação, faculdades e organizações profissionais começaram a introduzir componentes de medicinas alternativas e naturais nos seus conhecimentos e práticas clínicas.

 A população e os médicos, querem tratamentos seguros, naturais e mais baratos do que aqueles que muitas vezes são dispensados pelas indústrias farmacêuticas, que estimulem o nosso organismo a defender-se e a tratar-se. A relação entre o recém-descoberto Sistema Endocannabinoide e os componentes da cannabis, que não são todos ainda conhecidos e estudados, abrem uma esperança para o futuro da medicina em várias áreas.

Estas possibilidades ainda estão apenas estudadas superficialmente devido à criminalização imposta à cannabis. Daí que talvez seja uma postura não só oportuna e progressista mas também ética, flexibilizar o seu uso, pois tal permitiria não só o uso medicinal como aprofundar as experiências laboratoriais, bem assim como, talvez, regular o uso da cannabis como recreação, cortando pela raiz a malsã rede do contrabando que alimenta as redes do crime.

Sendo uma planta conhecida e utilizada há séculos pela população que conhece a sua utilidade não necessáriamente recreativa, e tendo em conta as recentes possibilidades médicas e industriais da sua utilização, com benefícios quer para pacientes, quer para os rendimentos da agricultura e do país, talvez fosse oportuno que alguma instituição ou pessoas de direito iniciarem um processso para viabilizar a sua produção regulamentada e demarcada, para efeitos de utilização médica e investigação.

  Quando comecei a escrever este texto, em consenso com alguns colegas da minha geração, que acharam que valia a pena, era na intenção de solicitar assinaturas para que texto tivesse alguma força quando fosse entregue nalguma instituição que fossemos escolher. No entanto, falei com os meus botões e fico-me apenas pela minha opinião.

Maputo,31 de Agosto de 2018